MUSEU DO TRANSPORTE PÚBLICO GAETANO FEROLLA




27/03/1968


Em julho de 1957, meus pais mudaram-se para a Rua Pedro Taques, 479, no bairro do Brooklyn Paulista, em São Paulo. Em torno de 50,0 m estavam os trilhos da linha de bondes Praça João Mendes - Santo Amaro, na parada de bonde "Volta Redonda". Segundo consta de relatos familiares, meus avós residiram ao lado da estação de força, próximo do atual pontilhão da Avenida dos Bandeirantes, na primeira metade do século, explicando, assim, o porque de meu avô ter adquirido a casa no Brooklyn.

Lembro-me com mais detalhes dos bondes a partir de 1963, quando atingi a idade escolar. Era interessante. Todos os dias, mesmo à noite, estava habituado com seus ruídos característicos. Acompanhava a dinâmica dos bondes de vários modos: da janela dos quartos, junto ao barranco, por cima e embaixo, onde atualmente é a Avenida Vereador José Diniz.

As paradas ao longo da linha possuíam abrigos e placas indicativas com nomes. Já um pouco desgastadas e com mau estado de conservação, ficava evidente que a linha antigamente era acessada através de catracas metálicas, visto que paralelamente ao deslocamento dos veículos notavam-se barras metálicas transpostas por arames farpados. Eram duas linhas: a com destino à Praça João Mendes e a de Santo Amaro. As luminárias eram globos de grandes dimensões com cerca de duas dezenas de lâmpadas incandescentes. Junto às paradas havia placas metálicas suspensas com os dizeres "PARADA DE BONDE". A menos de 200,0 m situava-se o balão de retorno, na parada Brooklyn Paulista, no cruzamento com a Rua Joaquim Nabuco. No centro do balão ficava uma banca de jornal. As ruas eram de terra e a iluminação incandescente. Atrás de casa era uma várzea, e a cerca de 200,0 m estava o Córrego da Água Espraiada. Do outro lado do rio tinha uma biquinha. Havia poucas construções e gostava de andar pelo mato. As pontes eram de madeira. Como não havia prédios e outras construções, os movimentos de bondes e aviões ao decolar e pousar no Aeroporto de Congonhas eram inteiramente acompanhados em detalhes.

Em fevereiro de 1968 iniciei minhas primeiras viagens em transportes coletivos sem a companhia de meus pais. Antes disso foram muitas viagens. Lembro-me de uma vez que ganhei do meu pai duas caixas de jogo de botão, uma do Palmeiras e a outra do Corínthians. Elas foram compradas próximo à Praça da Sé. Voltamos de bonde para o Brooklyn e chovia nesse dia.

Quando comecei a andar sozinho de bonde, havia ingressado no curso ginasial, na Extensão do Colégio Alberto Conte, em Santo Amaro, onde estão os prédios do Lineu Prestes. As aulas eram das 5h00 às 8h00. Todos os dias, por volta das 4h00 esperava a condução para a escola. Eram cerca de 6 a 8 km, e em torno de uns 20 a 30 minutos. Quando chegava o Teatro Paulo Eiró, puxava a campainha. O Colégio ocupava a quadra inteira. Precisava prestar atenção na hora da descida. Se não viessem veículos no sentido contrário estava tudo com segurança. Após o término das aulas saía logo, pois o tempo de espera do bonde permitia que comesse um pastel e tomasse um caldo de cana na Pastelaria Hong Kong, na Galeria Santo Amaro. Já nessa época o bonde não transitava mais até a Praça da Sé, e sim até o Biológico. Esta era a última linha de bondes em São Paulo. O trecho entre o Biológico e Santo Amaro era uma reta, e onde encontram-se as Avenidas Vereador José Diniz e Avenida Ibirapuera.

Muita coisa recordo dos bondes. As portas se abrindo, o funcionamento do compressor , as despressurizações dos freios, o atritamento da roldana do trolley com a fiação. Quando trafegava no escuro, era bonito ver o azulado decorrente do faiscamento e a consequente ozonização. Às vezes sentia-se cheiro de queimado. Os motorneiros e cobradores usavam paletó e o quepe tinha um número e a inscrição "CMTC".

A entrada era pela frente e a saída por trás. Aliás era "SAHÍDA". Dentro dos bondes existia outro ambiente, por causa das propagandas, os lustres e os movimentos de condução do motorneiro. Em cada trecho uma movimentação característica. O veículo atingia grande velocidade no trecho compreendido entre a parada Alto da Boa Vista e a Petrópolis. Era um trecho comprido, com vegetação com eucalipatos, correspondente à parte posterior do Clube Banespa. Considerando o sentido Santo Amaro - Brooklyn, à direita era a Chácara Flora. Se ele não parasse nos pontos a viagem diminuía cerca de 10 minutos.

Em certa ocasião, uma enchente do Córrego Espraiada provocou desmoronamento do barranco entre as paradas "Volta Redonda"e "Frei Gaspar". O tráfego ficou interrompido por mais de um ano. Foi improvisado um retorno na Rua Frei Gaspar e No balão do Brooklyn. O Córrego foi canalizado e é atualmente a Avenida das Águas Espraiadas. Na atual Avenida dos Bandeirantes existia uma chácara imensa, com muitas plantações de hortaliças.

As ruas começaram a ser asfaltadas e via-se pouco a pouco a extinção das várzeas, dos lebistes, girinos e dos coaxares dos sapos. O súbito aumento de veículos, pessoas e caminhões, além de acidentes, sinalizavam que tudo ia mudar.

De repente a notícia: os bondes seriam retirados de circulação. Fiquei preocupado porque achava complicado andar de ônibus. Bondes eram bondes.

No dia 27/03/68, após o encerramento da atividade escolar, já sabia que os bondes não haviam chegado em Santo Amaro. Podia-se perceber que o movimento no Largo 13 de Maio era muito intenso. Após entrar no ônibus, cheguei em casa por volta das 20h30. Um pouco antes das 21h00 os bondes com destino a Santo Amaro surgiram transitando devagar. Estavam todos lotados, com arranjo e faixas de "ADEUS". Enquanto faziam sua viagem de despedida para Santo Amaro, paralelamente à linha de bondes, faziam-se presentes alguns ônibus alaranjados e azuis da CMTC, Linha 621, Praça João Mendes - Santo Amaro.

Por volta das 23h00, da janela do quarto vi os bondes indo embora. No dia seguinte tudo estava muito triste. Os bondes foram embora para sempre.

A minha última viagem de bonde foi voltando da escola em 26/03/68.





Prevenir Accidentes é dever de todos